Abaixo segue um conto enviado por André Esteves, dono do site Beco do Crime.
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Entre Lobos
Por Andre Esteves
"A violência leva à violência, e justifica-a."
Gautier, Théophile
Não me importava com as agulhadas no braço. Havia me acostumado com o nariz sangrando e insensível, após a terceira ou quarta carreira em formato da inicial do nome que escolhi desta vez. Afastei o pudor e mostrei ardor com as adolescentes que me deram de presente. Afinal, eles pensavam que era meu aniversário.
Tudo isso fazia parte da rotina do meu trabalho. Não era a primeira vez que me infiltrava em morro, embora nunca com uma aposta tão alta.
Já há um ano ajudava naquela boca; comecei no avião, como sempre, e passei logo a soldado. Demonstrando as aptidões certas para tocar o negócio, foi me prometido por Caveirinha, o chefe do complexo na época, que passaria à gerência. É claro que não estava ali para prender os mortos de fome que viviam no morro — muito menos para mudar de lado. Falcão era o pseudônimo do cara que abastecia metade das favelas do Rio. Já havia apreendido mercadorias dele no Paraguai, queimado algumas de suas plantações no Nordeste e estive bem perto de descobrir sua identidade numa operação na Colômbia. Mas o infeliz, como a ave que lhe dava o apelido, não deixava rastro.
Agora, como gerente, passaria a tratar diretamente com os agentes dele. Nunca estive tão perto, mas as coisas não estavam sendo fáceis.
Entre os traficantes — repare que me refiro à ralé da boca, e não aos que puxam as cortas de seus apartamentos no Leblon — existe uma espécie de tradição, conhecida como o “batismo”. Formas de batismo comuns eram roubar um carregamento de cigarros, invadir uma favela rival ou, mais raramente, trazer o coração de um inimigo num saco plástico de supermercado.
Talvez você já tenha percebido que aquele era o dia do meu batismo. Estávamos todos no cume do morro, uma clareira cercada de árvores e mato. Apesar da aparente beleza, não se deixe enganar; os únicos animais — sem contar nós, que não merecíamos classificação diversa — eram os abutres, que voavam cada vez mais baixo, pressentindo o aroma de morte.
Ajoelhado a frente de caveirinha, estava um homem dos seus quarenta anos, morador da favela. Já o conhecia de vista e sabia que trabalhava como entregador de gás. Sua mulher e as duas filhas vendiam salgados do morro e eu costumava comprar.
Tudo isso só tornava a situação mais complicada.
A família dele estava na beira da clareira, impedida de se aproximar pelos homens — ou garotos — armados. A filha mais nova, de uns dez anos, trazia a mão enfaixada. A mãe não parava de espernear. Já a outra menina parecia uma estátua, observando tudo com seus olhos grandes.
O motivo da reunião era a mão enfaixada da menina: o pai havia chegado em casa bêbado e soltou pancada em todo mundo. A garotinha teve o pior destino, pois o pai espremera seus dedos na soleira da porta. Uma semana hospitalizada e dois dedos amputados, agora ela ali estava, enrolada na bainha da saía da mãe.
Caveirinha olhou para mim e balançou a cabeça; era hora. Aproximei-me do entregador de gás e seus lamentos passaram a ser dirigidos para mim. Pelo que disseram, ele tinha enlouquecido quando soube da amputação e andou uns dias vagando pela rua. No entanto, Caveirinha gostava de manter a lei na favela e mandou gente atrás dele.
Cheguei mais perto e senti o fedor que emanava do homem. Estava com a roupa rasgada e suja, como se fosse um mendigo. Ele meteu a cabeça entre os meus pés, esfregando o rosto na areia. Os gritos da mulher se acentuaram, pedindo perdão para o marido. Um dos traficantes a mandou calar a boca, senão rodaria também. Os urubus se aproximavam ainda mais.
Puxei a pistola do cinto — uma PT 380 cromada —, dei o golpe para colocar a bala na agulha. Não era um dos meus momentos mais agradáveis.
De repente, senti alguma coisa puxar minha blusa. Era a menina ferida, que passara pela barreira de traficantes, talvez porque estivesse absolutamente calma. Seu rosto contrastava enormemente com o clima no local e meus próprios sentimentos.
— Não mata meu pai, não.
Difícil explicar a doçura de sua voz; mais difícil ainda é explicar o olhar de desafio que Caveirinha — e os demais bandidos — me lançavam.
O vento e o choro do homem eram os únicos sons no cume. Então empurrei a menina e joguei meu joelho sob o maxilar dele, escutando o barulho de algo quebrando no processo. Arrastei-o pela camisa, agora escutando os gritos de todas as mulheres presentes. No canto da clareira havia uma caixa de cimento grande, conhecida como o microondas da favela. Joguei o homem de cabeça e descarreguei a pistola nele. Sem hesitar.
Embaixo da “churrasqueira” havia um latão de gasolina que despejei sobre o corpo. Acendi um fósforo e assisti a explosão de fogo que afastou, ao menos temporariamente, os funestos pássaros.
Passei pelos traficantes visivelmente orgulhosos e pela família chorosa do falecido. Continuei descendo e fui para a casa que ocupava no morro, abri a geladeira e destampei uma cerveja.
Falcão estava próximo agora. E nunca gostei de homem que espanca mulher, que dirá crianças. Continuei repetindo isso para mim mesmo até que acabou o estoque de cerveja em casa e eu saí para comprar mais.
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